A democracia marcou a história no final do século XX, quando o Muro de Berlim foi derrubado e a União Soviética foi dissolvida. Acadêmicos como Francis Fukuyama (1989) declararam que a dialética da história havia chegado ao seu objetivo final: a prevalência dos Estados Unidos teria demonstrado que a democracia seria o regime mais perfeito que a humanidade poderia ter criado.
Mas afinal, o que é “democracia”?
Nesse momento, a resposta que precisamos exige dispensar os dicionários e os manuais. A situação requer muito mais atenção. Por um lado, temos uma legislação que protege “o estado democrático de direito” sem nem ao menos esclarecer o que seria um “estado democrático de direito”. Por outro, temos um termo muleta: em discussões políticas, o adjetivo “democrático” parece significar qualquer coisa imprecisa como “algo que aprovo”, como na frase “esta decisão política é democrática”.
Diante dessa imprecisão, importa recorrer a uma das técnicas filosóficas mais marcantes de Sócrates: a “definição”. Ela pode ser conhecida em diálogos como “Teeteto” (1973). Nele, Sócrates pergunta a Teeteto o que seria “conhecimento”. Em resposta, o jovem fornece alguns exemplos. Sócrates explica que não perguntou por exemplos, mas pela definição: como filósofo, ele estava convencido de haver um “mundo das idéias” ao qual todos temos acesso, e ao qual devemos a própria realidade.
Sócrates queria com isso obter de Teeteto o que seria o “conhecimento” em si mesmo. Queria alcançar a idéia. Buscava transcender o físico e alcançar a forma pura, o metafísico, o impalpável — o inefável. É claro, acessar essa idéia muitas vezes requer observar a realidade; mas exige também o esforço posterior de abstrair e de conceituar, permitindo vislumbrar a idéia, a essência, a forma, a substância — ou, em termos mais práticos, ao menos uma correta classificação.
Façamos isso à democracia. Supondo que Sócrates fizesse a nós como fez a Teeteto e nos perguntasse “o que é democracia?”. É provável que responderíamos mencionando algumas características tidas como democráticas: “democracia é quando os cidadãos podem escolher seus representantes; é quando existe liberdade de pensamento, liberdade religiosa, liberdade de reunião e de associação”.
Sócrates insistiria: “não é disso que falo. Estas são características que costumam atribuir à democracia. Preciso saber de fato o que é democracia”. Prosseguindo, talvez arriscássemos responder usando de exemplos: “democracia é a maneira como governam o Canadá, os Estados Unidos, o Chile, a Alemanha” — quem sabe, o Brasil.
Com a paciência de um parteiro do saber, Sócrates mais uma vez insistiria: “também não é disso que digo. Estes são exemplos de democracia. Preciso em verdade saber o que é democracia em si”. Nesse momento, talvez frustrados, pode ser que nos arriscássemos a responder algo do tipo: “neste caso, democracia parece ser mais bem descrita como uma forma de governo, apenas isso”.
Essa resposta, sim, soaria adequada. Tomemos nota: democracia é uma forma de governo. Em termos aristotélicos, é uma definição satisfatória. Ela pode ser verificada na prática, no observável, no senso comum. Na verdade, a resposta é até mesmo óbvia. Seria facilmente acessível por meio dos dicionários e dos manuais que dispensamos. Mas a filosofia, em muitas ocasiões, é esse esforço de alcançar o óbvio. Ademais, o caminho pelo qual o alcançamos é muito mais promissor. Ele permite vislumbrar uma solução possível ao nosso problema: lembrar aquilo que a democracia não é.
E o que a democracia não é? Para responder, devemos avaliá-la com base em algum tipo de “régua metafísica” que permita medir tudo – simplesmente tudo. Podemos fazer isso recorrendo ao conceito aristotélico de “bem”. Ele pode ser encontrado em obras como “Ética a Nicômaco” (2006). Segundo o filósofo estagirita, há dois tipos de bens: o “bem principal”, que vale por si só, pelo seu valor intrínseco; e o “bem secundário”, que vale enquanto permite alcançar o bem principal.
Importa deixarmos claro que os bens principais são universais e incontestáveis. Nos termos aristotélicos, poderíamos inclui entre eles a sobrevivência, a justiça, a bondade, a felicidade. Como podemos notar, é uma lista seleta. Ora, se a democracia for de fato um sistema de governo, conforme concordamos, neste caso a democracia não cabe nessa lista. A democracia não é como a verdade ou com a felicidade. Antes, é um meio para se buscar bens primários, como a verdade e a felicidade.
Aqui, podemos enfim saber o que a democracia não é. Podemos enfim desfazer aquela que talvez seja nossa maior confusão ao pensarmos no assinto: confundi-la com um bem principal, quando em verdade é um bem secundário. Como forma de governo, a democracia não é algo a se buscar por si só. Antes, é um instrumento para buscar o bem primário. Portanto, a democracia deve tomar seu assento ao lado de outros regimes, como a monarquia, a aristocracia, a tirania.
E por que estamos dizendo de assento? Que tipo de assento seria esse? Nada impede que seja o banco dos réus. Como bem secundário, a democracia deve ajudar a alcançar o bem primário. Não servindo para isso, pode ser questionada ou reconsiderada. Existe o risco de que seja um bem aparente. Quem sabe, seja de fato um bem secundário, adequado para se alcançar alguma coisa que não seja o bem primário.
Dito tudo isso, voltemos à queda da União Soviética e ao fim da história. Aceitando essa tese, estamos nos arriscando a confundir a democracia com um bem primário, de suposto valor intrínseco. Afinal, toda a história aconteceu somente para realizá-la. Ignoramos o contexto político, lançamos o debate no contexto ético. Fazemos a democracia pairar sobre nós quase como um sinônimo de verdade, de bondade ou até mesmo de felicidade. Em nossa ingenuidade, quase dizemos que ser feliz é ser democrático, menos importando o que signifique de fato “ser democrático”.
Pois a democracia não é a felicidade, mas um regime político que promete levar à felicidade. Anda não temos certeza se ela é adequada para isso. A democracia possui caráter experimental. Seu passado é recente. Eclodiu na Revolução Francesa. Espraiou-se não de forma orgânica ou evolutiva, mas revolucionária e subversiva. Não surgiu do esgotamento dos modelos anteriores, mas de sua sabotagem. Tudo isso pode ser conhecido pela história da Revolução Francesa e pelas revoluções napoleônicas.
Além de experimental, a democracia possui origens controversas que a impede de ser o destino unânime de qualquer história. Autores como Stan Popescu lembram que, durante a Antigüidade clássica, a democracia tornou Atenas em uma cidade-estado corrupta e opressora. Entre outros desastres, a situação levou à Guerra do Peloponeso. Com isso, o regime caiu no ostracismo por milênios: como dito, seu ressurgimento ocorreu somente séculos depois, e de forma revolucionária.
Tendo esse histórico controverso, a democracia recebeu de filósofos clássicos opiniões nada lisonjeiras. Em “A República”, Platão a critica como um regime que tende ao populismo e à corrupção. Em “A Política”, Aristóteles a descreve como um regime degenerado. São observações que se amparam na realidade imediata de como a democracia corrompeu Atenas. Séculos depois, São Tomás de Aquino concordaria com a opinião daqueles filósofos.
Em favor da democracia, o que se pode afirmar é que a qualidade do governo não está exatamente em sua forma, mas em sua finalidade, ao que se ordena. Um governo ordenado a bens primários autênticos possui toda possiblidade de ser bem-sucedido em suas virtudes e em seus resultados. Isso no entanto não pode ocorrer em regimes que se ordenem a si mesmos, de forma que o seu melhor resultado seja fazer o que faz, seja lá o que esteja fazendo.
REFERÊNCIAS
Aristóteles. “A Política”. São Paulo: Martim Fontes, 2006.
Aristóteles. “Ética A Nicômaco”. São Paulo: Martin Claret, 2000.
Francis Fukuyama. “The End Of History?”. The National Interest journal, Summer 1989.
Platão. “República”. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 2016.
Platão. “Teeteto”. Pará: Universidade Federal do Pará, 1973.