(Este texto é um breve resumo da introdução ao conteúdo do curso “Como Se Defender de Trapaças no Debate”, apresentado nos dias 15/09, 27/10 e 24/11 na Associação Espírito-Santense do Ministério Público (AESMP)).

Introdução

A vitória em uma discussão nem sempre emerge da razão. Em muitos casos, o resultado favorável surgirá menos de fatos e mais de malícia. Quando encurralada pela verdade, uma das partes da controvérsia pode apelar a subterfúgios que permitam escapar a essa verdade. Entre outros, esses subterfúgios incluem emular emoções, incutir incertezas, distorcer definições e criar confusões, fazendo com que a verdade seja a última a ser considerada.

Diante desse risco, é preciso estar atento para não se deixar pegar desprevenido. É ingênuo imaginar que, para vencer o debate, basta ter os fatos ao seu lado. Em muitos casos, a verdade pode não ser tão convincente quanto uma safadeza semântica, uma confusão calculada, uma perversão pensada, uma manipulação mental. Evitar esse perigo exige não apenas contar com os fatos, como também desbaratar os truques rasteiros que buscam escapar a esses fatos.

Conquistar essa habilidade exige preparo para entender como esses truques rasteiros funcionam. É preciso desenvolver reflexos mentais ágeis, que nos torne capazes de se desviar desses golpes e ao mesmo tempo revidar, impedindo-os de causarem o estrago a que se destinam. Em outras palavras, isso exige estudar a “erística”, aqui entendida de forma resumida como “a arte de vencer a discussão sem ter razão”. É a esse assunto que este curso se dedica.

Fontes

A fonte principal deste curso é “A Arte de Ter Razão”, de Arthur Schopenhauer. Embora inconcluso, é um livro que se tornou referencial sobre o assunto. A edição aqui utilizada se tornou igualmente referencial no Brasil, porque recebe comentários de Olavo de Carvalho. Além de elucidar os conceitos, esses comentários ampliam o alcance deles, porque os aplica ao debate público mais amplo [1].

Os exemplos do curso serão extraídos principalmente da política, obtidos por meio de notícias jornalísticas. Eventualmente, serão incluídos exemplos dos contextos jurídico e científico. Enfatizamos a política porque os assuntos dessa área ganham rápida evidência na mídia e no debate público. Isso favorece vislumbrar e compreender as técnicas erísticas, porque as insere em um contexto prático e cotidiano.

Naturalmente, o uso de exemplos da política torna forçoso explicar que não se está defendendo ou julgando qualquer posição política ou personalidade da área. O interesse aqui não é o de discutir política, mas o de examinar técnicas erísticas em ação. Com humor, deixamos claro aqui que, no contexto deste curso, “direita e esquerda são as duas nádegas que formam o mesmo traseiro”. Nenhuma técnica aqui descrita é exclusiva desta ou daquela posição.

Definições

“Erística” aqui se entende como um conjunto de técnicas usadas para se obter vitória em uma discussão, somadas ao treino de sua correta aplicação. O maior diferencial dessas técnicas é a maneira com dispensam a lógica, a razão, a verdade e os fatos, preferindo usar de recursos alternativos como emoção, chantagem ou confusão mental. Para isso, a erística fornece as “falácias”, aqui descritas como argumentos próprios a esse fim. O praticante da erística – algo como o “erista” – estuda e pratica essas falácias, aprimorando a escolha e a aplicação eficaz delas.

Para que fique mais claro, podemos usar uma comparação exótica, mas eficaz: “erística” é uma espécie de “arte marcial” aplicável no contexto de uma discussão. O objetivo do praticante dessa arte é o de utilizar macetes e truques para vencer a discussão ao custo da verdade e dos fatos. Como toda arte marcial, a erística é composta pelo seu arsenal próprio de golpes. Esses golpes são as “falácias”, praticadas pelo “erista” que deseja aprender o momento adequado de aplicar cada uma delas com os resultados mais favoráveis possíveis.

O nome “erística” deriva de Éris, deusa da mitologia grega que representa o caos e a discórdia. Como os demais deuses gregos, Éris habitava o monte Olimpo. Apesar disso, houve ali uma festa à qual ela não foi convidada. Para revidar, Éris furtivamente lançou à festa um pomo de ouro, belamente esculpido. No pomo, podia-se ler para quem a jóia era destinada: “à mais bela”.

O pomo atraiu a atenção de várias deusas, que o disputaram entre si. Por uma série de coincidências e fatalidades, a disputa pela jóia desastrosamente resultou na Guerra de Tróia [2]. De forma semelhante, a erística busca lançar ao debate um “pomo da discórdia”, incitando confusão e permitindo escapar aos fatos, à lógica e à racionalidade. O “erista” não deseja alcançar a verdade, a justiça ou a lógica: seu objetivo é unicamente o de vencer o debate, não importando o prejuízo que isso possa causar à credibilidade de instituições como a justiça, o ensino, a democracia, a sociedade.

Métodos, objetivos

O método do presente curso inclui definição por conceito e explicação por exemplo. Inicialmente, cada truque erístico será apresentado em suas principais características. Em seguida, cada truque será explicado na prática por meio de exemplos obtidos da política e, eventualmente, do direito e do debate científico.

O objetivo do curso é o de permitir entender como esses truques funcionam em um contexto prático. É o primeiro passo para reconhecer um truque erístico com o máximo de rapidez possível em meio a um debate. Essa rapidez é indispensável: lidar com uma falácia erística demanda reconhecer o truque e reagir em tempo, antes de ele causar o estrago planejado. É preciso agilidade suficiente para esquivar ou bloquear o truque e logo o revidar, o que pode ser feito ao se denunciar o truque erístico.

Como dito, a erística pode ser entendida como uma arte marcial. Defender-se dela, portanto, exige seguir o mesmo método de artes marciais voltadas ao objetivo prático de defesa pessoal: aprender a reconhecer os golpes de outras artes e treinar formas de escapar e de se defender deles em tempo. Ora, para escapar a esses golpes, é preciso celeridade para os perceber, antecipando o movimento. Isso permite bloquear ou desviar e revidar com a destreza requerida, frustrando a intenção do agressor.

Outra maneira de entender a situação é a de comparar a erística ao estelionato. A forma mais eficaz de se defender de estelionatários é aprender os seus golpes. Isso nos permite reconhecê-los em tempo quando estiverem tentando nos enganar ou enganar alguém que esteja por perto. De fato, a erística possui algo do estelionato: de certa forma, ambos usam de trapaças para convencer alguém a fazer algo que, em circunstâncias normais, jamais faríamos.

Justificativa

A justificativa do curso é quase auto-evidente. Defender-se de falácias erísticas é necessário à proteção pessoal e até mesmo à sobrevivência coletiva. A erística nos convence de argumentos viciosos que pode nos fazer tomar decisões equivocadas. Essas decisões podem ser individuais ou coletivas, podendo ensejar pelo exemplo outras decisões igualmente perigosas. Como resultado, essas decisões podem induzir uma série de perdas, de danos, de prejuízos. Aprender a se defender da erística, portanto, é uma necessidade pessoal e até mesmo uma obrigação moral.

A importância do estudo da erística fica evidente no contexto jurídico. Pois imaginemos uma situação em que o júri se deixe ludibriar por uma série de truques erísticos, concedendo absolvição a um indivíduo sabidamente perigoso e condenável. Neste caso, o júri terá dado à liberdade uma pessoa que sempre poderá abusar dela, causando perdas e danos à sociedade. Além disso, terá prejudicado a justiça, porque a impediu de dar àquele indivíduo a punição que lhe era devida, situação que descredencia todo o sistema.

Ademais, importa aprender se defender da erística em uma série de situações da vida. Pode ser no contexto profissional, no político, no pessoal. Pode ser como eleitor, como cidadão, como trabalhador. Em todos esses casos, falar é fundamental. Para o ser humano, fazer algo implica dizer algo. Entre outras conseqüências, isso exige que o ser humano esteja sempre se engalfinhando em debates. Sabendo disso, é preciso estar sempre pronto para enfrentar situações onde “vitória” e “verdade” nem sempre andam juntas.

Dialética, retórica, erística, mentira

Ao se comentar de “erística”, pode haver certa confusão desse termo com “dialética”, “retórica” e “mentira”. É útil e pertinente evitar esse equívoco. Para isso, é preciso explicar como se entende aqui cada um desses conceitos. Faremos isso nos próximos parágrafos.

Em termos aristotélicos, “dialética” é uma técnica filosófica clássica [3]. Grosso modo, ela consiste em confrontar duas opiniões ou perspectivas divergentes. O objetivo desse esforço é o de combinar os aspectos dessas perspectivas que mais se aproximam da realidade daquilo que descrevem. Isso permite criar uma terceira perspectiva que sintetiza o melhor das perspectivas originais. A utilidade dessa técnica surge em situações de incerteza, situação que enseja opiniões divergentes e dificilmente conciliáveis.

Em termos igualmente aristotélicos, “retórica” pode ser entendida como recursos narrativos para elucidar uma idéia, um conceito, um raciocínio [4]. Esses recursos incluem comparações, analogias, metáforas, ilustrações, exemplos. A fim de tornar o argumento mais compreensível, a retórica ensina como fazer uso desses recursos para elucidar uma idéia ou um raciocínio.

Essas definições permitem concluir que “dialética” e “retórica” são estratégias lícitas. Elas podem ser entendidas como caminhos possíveis para se alcançar o real, o verdadeiro, o lógico, até mesmo o belo e o justo. É claro, podem haver outras definições desses conceitos que as aproxime do que aqui rotulamos como “erística”. No caso do presente curso, preferimos isolá-las, para que o conceito de “erística” fique mais esclarecido.

Finalmente, a erística pode acabar confundida com simples e mera “mentira”. Sim, praticar erística pode implicar em mentir; no entanto, é uma mentira muito mais sutil e sofisticada. Não se trata simplesmente de falsificar ou mascarar os fatos. Antes, é o de torturar os fatos para extrair deles conclusões favoráveis, ou de simplesmente ignorar esses fatos por meio de subterfúgios que os retire da evidência.

Em alguns casos, a erística pode ter aparência de verdade. É o que faz quando usa de duas premissas verdadeiras para defender uma conclusão falsa. Seria o caso de afirmar que “a lua é redonda” e que “a laranja é redonda”, afirmações rigorosamente verdadeiras; e daí concluir que “a lua e um tipo de laranja”, conclusão evidentemente falsa.

Em outros casos, a erística simplesmente tenta tornar a verdade em critério inválido para avaliar uma situação. É o que ocorre quando defende abandonar os fatos em favor de critérios secundários, como as emoções. É o caso de tentar confundir a situação do criminoso com a da vítima, afirmando que o criminoso jamais teria cometido o crime se não houvesse sido vitimado por uma sociedade cruel e excludente.

Esclarecimento

O tema aqui abordado exige esclarecer que esse curso não é um manual de instruções, mas uma denúncia. O objetivo não é o de ensinar a vencer sem razão, mas o de escapar a truques que buscam esse resultado. Apesar disso, é preciso admitir que o estudo das técnicas aqui ensinadas podem ser usadas tanto para o fim lícito de auto-defesa quanto para o fim nefasto de vencer discussões de forma ilícita. Daí a necessidade de tornar clara a intenção do autor.

Nesse contexto, esse curso funciona como qualquer ferramenta de combate. Pode ser usada para fins defensivos. Pode ser usada para fins reprováveis. Ora, usamos em diversas ocasiões metáforas ligadas a artes marciais. De forma semelhante ao que ocorre em muitas artes marciais, devemos solicitar àqueles que seguem este curso que façam um juramento semelhante ao que se solicita aos praticantes daquelas artes: que jamais usem do que aprenderem aqui com outra finalidade que não seja defensiva.

Aos que se dispuserem a fazer esse juramento, lembramos a importância do rito de se conceder a palavra. Em muitas ocasiões da vida, nossa palavra será a única coisa que realmente teremos.

Agradecimentos

Registramos aqui os agradecimentos à Associação Espírito-Santense do Ministério Público (AESMP), pela oportunidade de ensinar sobre um assunto dessa importância; e os devidos elogios ao promotor Leonardo Augusto de Andrade Cezar dos Santos, atual presidente da Associação: foi dele a idéia de criar um curso sobre o assunto; e foi dele a iniciativa de encomendar esse curso.

(Iniciam-se aqui as exposições sobre as falácias em si. Elas não fazem parte do propósito deste texto inicial.)

Referências

[1] SCHOPENHAUER, Arthur. “A Arte de Ter Razão”.
[2] CARVALHO, Olavo de. In: SCHOPENAUER, Arthur. “A Arte de Ter Razão”.
[3] Cf. ARISTÓTELES, “Organon”.
[4] Cf. ARISTÓTELES, “Retórica”.