“Bata em jornalista: gostoso demais”. Retirada de um meme, a frase é um registro contundente da constante crise de imagem do jornalismo. Junto a advogados, a políticos e talvez a médicos, os jornalistas seriam um dos profissionais mais desprezados, ou desprezíveis. O leitor consome notícia e adora odiar quem produz notícia, suspeitando do jornalismo como quem suspeita de publicidade ou de promessas eleitorais. De onde surge esse desprezo? Parte dele, claro, deriva da própria preferência do leitor. É esperado que elogie jornais com os quais concorda e despreze aqueles dos quais discorda, especialmente em assuntos políticos. A parte mais importante, no entanto, surge uma situação muito mais essencial, algo que remete às próprias estruturas da profissão: a maneira como o jornalismo tende a se afastar de seus objetivos originários, condensados em sua “nobre mentira”.

Obtido da filosofia clássica, o termo “nobre mentira” pode causar inquietação. Se estamos dizendo de uma “mentira”, mesmo que seja “nobre”, não seria mais prudente a descartar? Não parece ser o caso. Ironicamente, longe de beneficiar a verdade, abandonar essa “nobre mentira” impõe o efeito contrário de empurrar as redações no caminho do engodo e do engano. A idéia dessa “nobre mentira” é obtida a partir de Sócrates. Grosso modo, segundo o filósofo, toda coletividade pode se beneficiar de uma “narrativa original” que lhes dê senso de unidade, de organização e de direção em busca da melhor versão de si mesma [1]. Ora, se entendermos o jornalismo como uma coletividade, podemos deduzir que ele também possui sua própria “nobre mentira”. Ali também há uma concepção do que fazer e para onde ir. E menos importa se a “narrativa original” for de fato uma mentira, ou melhor, um mito: o que realmente importa é que cumpra a função “nobre” de dirigir a atividade ao seu melhor potencial. O termo foi aplicado ao jornalismo dessa forma por Franklin Foer [2], que cita alguns exemplos dessas “mentiras”. É o caso da “missão” de trazer alta cultura às massas. Explorando esse uso peculiar do termo, podemos encontrar outros exemplos interessantes. Vejamos três deles.

A primeira dessas nobres mentiras é o “método Igreja-Estado”. Nele, assim como a Igreja se apartaria do Estado, o jornalismo se apartaria da publicidade. Sugerido por Eugênio Bucci [3], o objetivo desse método é o de proteger o exercício profissional do jornalista. Isso não se faz no interesse do bem ou da moral, mas do próprio negócio. Por essa lógica, o leitor compra o jornal com base na qualidade da notícia. Alcançar essa qualidade exige que o jornalista sobretudo diga a verdade. E dizer a verdade implica o risco de pisar o calo de muitos anunciantes. Quando isso ocorre, a publicidade logo surge com suas inevitáveis queixas: “como vamos vender espaço se você maltrata quem compra o espaço?”. Nesse momento, o método surge para poupar o jornalista. Ele o faz porque entende que o jornal depende menos de anunciantes e muito mais de leitores. Afinal, os anunciantes estão atrás de leitores; e leitores não buscam anúncios, mas notícias.

Na busca dessa qualidade jornalística, encontramos a nobre mentira do “senso de dever”. Ele impõe ao jornalista que diga sempre a verdade; que a sua descrição dos fatos corresponda de forma exata aos fatos como são. Isso deve ser assim porque o jornalista exerce um ofício de função coletiva. Existe em sua profissão algo de dever social. Para começar, aquilo que o jornalista noticia será consumido por muitos. A informação que entrega ou revela serve de base para centenas, milhares de decisões, de opiniões, de conclusões. Além disso, o produto noticioso é menos fugaz e efêmero do que se imagina. Ao produzir notícias, o jornalista deixa registros que podem ser posteriormente consultados, servindo de base para futuras opiniões, conclusões, decisões. Ademais, o jornalismo é um produto de função democrática. As informações que transmite são indispensáveis para que a coletividade forme opiniões e tome decisões políticas adequadas. Por tudo isso, o jornalista precisa servir à verdade. Deve fazer seus melhores esforços para investigar e relatar a vida como ela é. Precisa se esmerar em obter as melhores fontes. Deve gastar a sola dos sapatos cruzando a cidade inteira em busca de todos os depoimentos necessários, sempre concedendo voz aos dois lados de uma questão.

Finalmente, na busca dessa verdade, deparamos com a nobre mentira da “objetividade”. O jornalista está obrigado a entender que não pertence a si mesmo. Deve apurar os fatos estando isolado de sua perspectiva pessoal. Não pode se deixar deslumbrar, seduzir, encantar. Da mesma forma, não pode se deixar irritar, ressentir, enfurecer. Deve impor todo tipo de filtro ao que possa afetar sua capacidade de ser neutro e objetivo em sua descrição daquilo que há e daquilo que ocorreu. Por exemplo, o jornalista deve recusar presentes: isso pode distorcer sua percepção daquilo que vê ou avalia. O jornalista deve apenas se deixar traspassar pelos fatos. Seu trabalho precisa refletir a realidade não como uma pintura, mas como um espelho. Afinal, o jornalista não é a voz, mas concede voz. Ele não é o fim, mas o meio. O jornalista é quase um historiador em seu dever de ser rigoroso em relação às fontes, aos testemunhos, aos relatos. Sim, ele deve ajudar a interpretar os fatos. Disso também depende a qualidade de seu trabalho. No entanto, isso não o autoriza a narrar esses fatos conforme os entende: fatos devem ser narrados estritamente como são.

Por óbvio, em todas essas nobres mentiras, há menos de nobreza e muito mais de mentira. Sua aplicação é difícil de realizar e ainda mais ainda de verificar. Como resultado, as violações voluntárias e involuntárias são freqüentes. O “método igreja-estado” jamais perdura: o espaço publicitário logo invade o jornalístico. O “senso de verdade” pode ser difícil de alcançar: não tarda até que prevaleça a percepção engajada do jornalista, ou o interesse do empregador desse jornalista. A “objetividade” é ontologicamente impossível: o viés do jornalista cedo ou tarde afeta sua percepção dos fatos; e isso não é estranho, já que o conhecimento humano é basicamente testemunhal. Nada disso, no entanto, permite concluir que o método deve ser abandonado. É um padrão de qualidade. Funciona como ideal que norteia e dirige a prática jornalística. Ironicamente, a fragilidade da “nobre mentira” não a invalida, mas a favorece: sendo frágil, precisa ser defendida com intransigência. Sem ela, o jornalismo perde sua base. E, sem essa base, o jornalismo perde sua razão de ser, porque se descaracteriza de suas intenções originais, mesmo que essas intenções e essa originalidade sejam tão somente parte dessa “nobre mentira”.

Portanto, o que preocupa não é a incapacidade de se alcançar as metas da “nobre mentira”, mas o abandono dessas metas. A situação atual parece estimular esse abandono, ou ao menos o tornar evidente. Não raro o jornalista se sente confortável em descrever a si mesmo não como um relator, um missivista, mas como um “guerreiro da justiça social”, imbuído de uma “ideologia” pela qual deve “combater”. Enquanto isso, a notícia sobre as virtudes deste ou daquele produto vem acompanhada de um anúncio publicitário sobre estes ou aquele mesmo produto. Tudo isso impõe ao leitor uma série de incertezas e de inseguranças. Quem lê a notícia nunca pode estar certo ou seguro de estar consumindo um relato, um informe publicitário, uma panfletagem politiqueira, uma propaganda eleitoral. De alguma forma, desgraçadamente, o contexto realiza o dito popular segundo o qual a ignorância é uma bênção. De fato, no lugar de informação falsa, é preferível não ter informação alguma. Quem sabe, o jornal um dia volte a depender de leitores. O apelo à “nobre mentira” terá sua chance de retornar. Até lá, a dúvida torna mais prudente pôr o jornal de lado. Antes ficar parado do que se dirigir a um abismo. Custa menos perder uma oportunidade do que sofrer um prejuízo.

[1] Platão, “A República”.
[2] FOER, Franklin. “O Mundo Que Não Pensa”.