A realidade seria uma simulação de computador? O advento dos brinquedos digitais intriga e desperta essa questão. Esta talvez seja a angústia filosófica por excelência do período técnico mais recente. Não que a questão também seja recente: de maneira semelhante, em um exercício hiperbólico, René Descartes [1] outrora questionou se a realidade não seria um sonho induzido por um demônio. Seja como for, a era digital resgata e recicla o contexto, pondo a questão mais uma vez em evidência. Influencers, escritores, podcasters, bloggers: todos inundam a Internet com material sobre o assunto, ostentando a falsa sabedoria de quem exercita a dúvida pelo simples amor à dúvida. Afinal, estaríamos vivendo como um cérebro em conserva, estimulado por uma simulação produzida em computador? Haveria um programador maligno impondo à nossa mente uma grande simulação?
Antes de começar, para que sigamos tranqüilos: a resposta simples e direta à pergunta que abre este texto é um sonoro “não”. O real continua real. Sempre foi, sempre será. O autor desse texto não é uma simulação de inteligência humana. O leitor que lê esse texto também não é. Parentes, amigos, árvores, carros, unhas: com certeza nada disso é uma projeção virtual hipe-realista. A realidade é muito menos problemática do que insinua a filosofia moderna. O problema é que essa certeza pode ser difícil de alcançar. Para se sustentar, a “hipótese da simulação” usa argumentos sofísticos bastante sofisticados. Para alguém desavisado, eles podem soar lógicos, sensatos, inteligentes e até mesmo incontornáveis. Como veremos, esse não é o caso em nenhum deles. É claro, no curto espaço de um ensaio, não cabe avaliar todo e qualquer argumento a favor dessa hipótese. Eles são muitos e continuam se multiplicando. Portanto, abordaremos somente dois deles, localizados em dois pontos essenciais da discussão: o primeiro, a possibilidade de o real poder se tornar pura simulação; e o segundo, a possibilidade de o real ser de fato pura simulação.
Dessa forma, recomecemos lançando a primeira pergunta: a realidade poderia ser ou vir a ser puramente virtual? Responder que sim exige se escorar no “argumento da probabilidade”. Uma defesa representativa desse argumento pode ser encontrada em obra de David J. Chalmers [2], nossa principal referência por aqui. A idéia se sustenta no estágio presente das tecnologias computacionais. Aos “teóricos da simulação”, essas tecnologias teriam alcançado uma evolução prodigiosa. Tecnicamente, teríamos avançamos muito desde que Descartes sugeriu que nossa realidade seria o sonho induzido por um demônio; e desde que Hillary Putman [3] insinuou que a realidade seria uma simulação injetada em nosso cérebro, que existiria num frasco de conserva (em inglês, “brain in a vat”). Vide os processadores, os cartões de memória, a rede de computadores. Tudo isso nos obrigaria a encarar com seriedade nosso potencial para trancafiar mentes numa simulação perfeita. Não tarda até que estejamos como na trilogia de filmes “Matrix”, onde computadores gigantes encarceravam a mente das pessoas em uma gigantesca simulação digital. Isso se é que já não estamos vivendo nessa situação. Em resumo, o real provavelmente é de pura simulação porque a tecnologia atual indica sermos capazes de criar uma realidade de pura simulação. Nas palavras do próprio Chalmers,
“The simulation hypothesis may once have been a fanciful hypothesis, but it is rapidly becoming a serious hypothesis. Putman put foward his brain-in-a-vat idea as a piece of science fiction. But since then, simulation and VR technologies have advanced fast, and it isn’t hard to see a path to full-scale simulated worlds in which some people could spend a lifetime.”
Não é difícil deduzir que esse caminho para um “mundo simulado em escala total” não é apenas para o futuro, mas principalmente para o presente. Afinal, tecnologias supostamente avançadas podem estar sendo empregadas neste momento para projetar uma realidade simulada em nossa mente. Só um problema: vislumbrar essa possibilidade nas tecnologias atuais requer um excesso perigoso de otimismo. Verdade seja dita, elas não avançaram rápido. Pelo contrário, o estágio atual delas é precário demais. Podemos entender isso cedendo às premissas de Chalmers e recorrendo também a “Matrix”, o “manual de metafísica dos teóricos da simulação”. Os filmes da trilogia permitem imaginar como seria uma simulação perfeita, criando dessa forma um “padrão Matrix de qualidade”. Ora, comparado a esse padrão, o estado atual de nossos brinquedos virtuais é decepcionante. O dispositivo mais avançado inclui uma máscara que enclausura nossa visão em representações digitais pouco convincentes. Interagir com elas exige gesticular no ar de forma ridícula. Ver alguém fazendo isso nos obriga a dar risadas. É preciso boa vontade ou ingenuidade para se deixar tapear por esse bricabraque primário. Para sermos justos com Chalmers, ele mesmo admite essa precariedade, embora insista que não será assim para sempre. Mas o futuro aqui não importa. O presente é o bastante para descartar esse “argumento da probabilidade” nos termos do próprio argumento. A julgar pela nossa tecnologia atual, essa probabilidade é irrisória. E mesmo que não fosse, o argumento continuaria sendo descartável: por maior que seja, a probabilidade não basta para provar algo, porque não é causalidade. O assunto deve ser arquivado.
Dito isso, podemos lançar nossa segunda pergunta: o real seria feito de pura simulação? Aqui o exame do caso exige mais cautela. Afirmar que o real é virtual requer apelar ao “argumento da ignorância”, um truque sofístico do qual pode ser difícil se desembaraçar. O truque é fácil de entender. O passo inicial é o de fazer uma proposição qualquer, por mais absurda que seja — digamos, “a mosca é um ser alienígena transmutado”. O passo seguinte é aguardar o esperado questionamento: “você pode provar isso?”. O passo final é rebater o questionamento: “e você pode provar que NÃO é isso?”. Assim como o argumento da probabilidade, esse argumento da ignorância também pode ser encontrado na obra de Chalmers. Ali se lê que, se estivermos realmente vivendo em uma simulação perfeita, isso significa que estaríamos filosoficamente encurralados. Por um lado, seria impossível demonstrar que a realidade é uma simulação. Afinal, a simulação é perfeita. Por outro, seria igualmente impossível demonstrar que a realidade não é uma simulação. Afinal, mais uma vez, a simulação é perfeita. Com isso, perceber o real como virtual é impossível. A porta de entrada é a porta de saída. Se fosse o caso, o real seria irreal e o irreal, real. Tente sair desse sistema e ficará rodando para sempre numa porta giratória metafísica. Nos termos de Chalmers:
“If we’re in a perfect simulation, it’s hard to see how we could ever get evidence of that fact. Our evidence in the simulation will always correspond precisely to evidence in the unsimulated world. It’s just as hard to get evidence that we’re not in a perfect simulation. As before, any such evidence could in principle be simulated.”
Dessa forma,
“(…)[W]e can never get experimental evidence for or agains perfect simulation hypothesis. A nonsimulated world and a perfect simulation of it will seem exactly the same. So, according to the testability crterion, the hypothesis that we’re in a perfect simulation is not a scientific hypothesis. Instead, we can think of it as a philosophical hypothesis about the nature of our world.”
Com isso, Chalmers chega a admitir que a hipótese não pode ser científica, porque não é testável. A fim de salvá-la, transfere-a de um contexto científico para um contexto que define como filosófico. Tudo isso soa interessante, mas é apenas um macete para introduzir uma inversão do ônus da prova. “Certo, eu não posso provar que a realidade é uma simulação”, admite o teórico da simulação. “No entanto, alguém pode provar que a realidade não o é?”. Verdade seja dita, a resposta é negativa. Pela lógica, podemos provar que algo é; podemos não provar que algo é; mas jamais podemos provar que algo não é. “Pois bem”, prossegue o teórico da simulação, esfregando as mãos de contentamento. “Sabe o que isso significa? Que a realidade é uma simulação perfeita! Afinal, quem pode provar o contrário?” Realmente, como admitimos, ninguém pode. Com isso, o argumento da ignorância declara a própria vitória. Nesse momento, alguém poderia dizer que extrair esse argumento é injusto. Afinal, o autor não o manifesta diretamente. Pois a verdade é que mais injusto ainda seria impedir uma leitura interpretativa. Em situações desse tipo, o dito vale muito mais do que o não-dito. Evitar essa conclusão exige, no mínimo, ingenuidade.
Percebendo esses defeitos, fica fácil perceber que “argumento da ignorância” não é argumento. Quem afirma algo é quem deve provar algo. Inverter essa obrigação não é demonstração lógica ou filosófica. É apenas usar de um truque para vencer o debate sem ter razão. Ao amparar dessa forma seu raciocínio, esse teórico somente faz de aplicar uma falácia, um golpe baixo retórico, um chute sofístico nas partes baixas. Mas o golpe é fácil de escapar. Basta insistir no óbvio: aquele que propôs algo é aquele que deve provar esse algo. Se não puder provar, a hipótese fracassou. Apegar-se a ela é insistir no erro. Como ensina Aristóteles, uma hipótese precisa estar ancorada em observações da realidade [4]. Sem essa observação, não existe argumento. Além disso, pela lógica, todo argumento precisa ser possível de refutar. Não sendo, não é argumento, é ideologia. O assunto também deve ser arquivado.
Apesar disso, podemos conceder uma segunda chance à possibilidade de o real ser virtual. Para isso, será necessário abandonar os argumentos da probabilidade e da ignorância. No lugar, devemos buscar um indicativo mais confiável de que estarmos sendo ensopados vivos em uma simulação de computador. Em busca desse indicativo, podemos mais uma vez conceder às premissas do debate e recorrer novamente a “Matrix”. No filme, os personagens sabiam viver numa simulação devido ao “dejá vu”. Ali, esse fenômeno cerebral era descrito como um resíduo que denunciava uma súbita reprogramação no sistema que nomeia o filme. O “dejá vu” era como um “glitch”, um “bug” que denunciava a realidade como mera simulação. Ora, teríamos por acaso algo semelhante a esse “déja vu”? Teríamos esse “glitch”, esse “bug” na realidade que somente poderia ser explicado como uma pista gritante de que nosso café da manhã, nosso cônjuge e nosso sabor preferido são meras simulações digitais? Verdade seja dita, não temos essa pista. Mais uma vez, o assunto deve ser arquivado.
Nesse momento, é forçoso admitir que a discussão fica aborrecida. É melhor abandonar a hesitação e lançar de uma vez a sentença: de agora em diante, a hipótese da realidade como simulação fica descartada. Como dito, a brevidade de um ensaio não permite alcançar todos os argumentos de todos os ditos filósofos que defendem essa “hipótese da simulação”. Mas os contra-argumentos aqui expostos podem ser perfeitamente aplicados a muitos outros casos. Por exemplo, em artigo referencial sobre o assunto, Nick Bostron [5] sugeriu que nossa realidade seria uma simulação criada por seres humanos biológicos e avançados. A intenção desses seres ao nos criar teria sido a de nos observar em ação para entender o passado. Não é difícil perceber o argumento por detrás dessa peça de ficção: “você por acaso pode provar que a realidade não é uma simulação criada por seres humanos avançados?”. Ou seja, é uma nova forma de inverter o ônus da prova. É um juízo que não pode ser falseado. E juízo que não pode ser testado ou falseado não é juízo, é ideologia – ou delírio. Além disso, o ônus da prova é, necessariamente, de quem afirmou. De novo, o assunto deve ser arquivado.
Enfim, o momento exige superar esse assunto. Verdade seja dita, esta é uma conversa de bar. Um passatempo. Uma distração. E conversas de bar desse tipo nunca deveriam ter sido confundidas com filosofia. Existem problemas de verdade esperando por solução. É vicioso imaginar que somente podemos estudar o real quando tivermos certeza de que o real é real. Pois imagine o ridículo de se recusar a discutir o aborto, a eutanásia ou a engenharia genética somente porque, antes disso, precisamos estar absolutamente certos de algo tão natural e certo quanto a existência da realidade. Fazer isso é como se recusar a se desviar de um carro desgovernado, exigindo antes ter certeza de que existimos de fato, de que não somos o mero delírio psicotrópico de uma borboleta dravídica. Fazer isso não é filosofia, não é investigar a realidade, não é buscar a verdade. É apenas se deixar levar por enigmas malignos e sem solução; é apenas se deixar fazer prisioneiro do mesmo argumento da ignorância, reciclado e refinado mil vezes. Comentamos acima que a questão do mundo como simulação é uma das mais marcantes da atualidade. Isso somente revela como essa atualidade deixa a desejar.
REFERÊNCIAS
[1] DESCARTES, René. “Meditações Filosóficas”, ????.
[2] CHALMERS, David. “Reality+”.
[3] PUTMAN, Harry. “Brains In A Vat”, 1995.
[4] CHALMERS, David. “The Matrix As Metaphysics”. 2004.
[5] BOSTRON, Nick. “Are You Living in a Computer Simulation?”, 2003
[6] ARISTÓTELES. “Organon”.